quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

The Wind Cries Mary

Maria era uma mulher devota, de uma humilde província do norte do país. Uma terra dominada pela barbárie, atrasada por pelo menos 2 mil anos em relação ao resto da civilização. Mas ela mantinha-se serena, com sua fé e valores inabaláveis. Mesmo sendo uma das mais belas e cobiçadas, mesmo com coronéis oferecendo-lhe mundos e fundos, ela que fora criada para ser a esposa perfeita, decidiu entregar seu amor a um humilde trabalhador braçal, que nada tinha além da honestidade e dignidade.

Desde pequena, Maria sabia todas as orações de cor, rezava por uma vida melhor e pelo fim de tanto sangue derramado por um pedaço de chão. Rezava para ficar longe dos jagunços, talvez para um dia sair de lá e levar sua família toda para um lugar belo e seguro. Era a mais prendada de suas irmãs: aprendeu a costurar desde cedo e cozinhava como ninguém que vivia naquelas bandas. Sabia aproveitar o pouco que tinha para transformar em saborosa comida, uma raridade dentro daquele ambiente tão carente e precário. E sua beleza era indescritível: seu rosto conseguia ser belo como porcelana mesmo quando sujo de terra ou carvão. Suas mãos que aguentavam o mais pesado labor não perdiam a delicadeza, mesmo com anos de lida. E, no mais ensolarado dos dias, sua pele não exalava odor algum. Era uma menina rara que estava florescendo em encantadora mulher.

Claro que isso despertou o desejo de muitos poderosos que eram acostumados a ter tudo que queriam. Mas a ela não podiam ter, já que havia se prometido a José no mais puro voto: castidade até o dia de seu casamento. E o dia estava próximo: haviam anunciado que em alguns meses o juiz de paz de uma cidade maior visitaria a cidade para unir em matrimônio os casais que assim quisessem. Até lá, seu namoro se resumia a pequenas prosas no portão, sempre à vista de todos e antes da noite ficar muito tarde.

Em uma dessas ocasiões, após José deixar sua casa, ela ficou um tempinho a mais para fora recolhendo lenha para o fogão, que seria usada no dia seguinte. Foi quando, de longe, escutou um mau presságio: um barulho infernal de automóvel, coisa rara naquela região. Apenas quem os possuía eram os coronéis, que quando apareciam no bairro era apenas para causar tumulto e sofrimento aos moradores. E a picape vermelha parou em frente à sua casa, quando um dos coronéis a fez um descortês elogio. Enrubescida com tamanha grosseria, Maria nada fez além de continuar seu labor cabisbaixa, tentando nem olhar em direção ao tenebroso veículo. Mas homens poderosos odeiam sem ignorados, e após mais dois ou três "elogios" sem resposta, o coronel ficou enfurecido e desceu da caminhonete, estapeando a menina. Foi quando a lua tão bela brilhou em seu rosto, e ele viu aqueles olhos profundos e quis tê-la. Ora, um homem desses tem tudo o que quer, mesmo que à força. E foi esse o destino de Maria: estuprada às vésperas do casamento.

Era muita dor e vergonha para uma devota como ela. Sem saber o que fazer, a garota passou dias isolada e chorando, ninguém conseguia falar com ela. Foi então que José, em sua imensa bondade e palavras sábias que não condiziam com sua falta de escolaridade, conseguiu convencê-la de falar com ele, e, aos poucos, arrancou toda história. O rapaz sentiu-se impotente como nunca: incapaz de controlar sua sede de vingança e de ver o sangue de quem roubou-lhe a pureza de Maria e a humilhou. Incapaz de sequer saciar a sede, pois precisaria alcançar alguém que é intocável. E, em meio a tanta angústia e desespero, ele soube ser sábio, beijou a testa de sua noiva e a confortou. Disse que seguiria com o casamento e que, para ele, virgem ela sempre seria, pois sua pureza de espírito era o que contava.

Mal sabia ele que, tempos depois, para escândalo geral na vila, Maria apareceria com uma barriga, que não daria mais para esconder. Em meio a tantas fofocas e insinuações, em meio à revolta do pai da garota que queria desfazer o casamento, José deu sua maior cartada: disse a todos que sua futura esposa permanecia casta, mas, tamanha era sua pureza, que ela havia engravidado do sopro de vida de Deus, e que de seu ventre nasceria o herdeiro da bondade. Ele, que nunca havia jurado na vida, deu sua palavra a todos que a barriga de maria era o mais belo milagre e, com a soma de fé e ignorância daquelas pessoas, convenceu um a um de que seria padrasto do fruto máximo do amor. Quando a vontade de Maria mesmo era dar um fim àquela barriga, sendo só impedida pela sua falta de coragem e condições financeiras de fazê-lo.

O fato é que a criança nasceu, e foi quando Maria aprendeu a amá-la. Era um menino forte, e, apesar da falta de material genético, seu caráter inteiro foi moldado pela personalidade íntegra de José. De tanto que pai e filho se aproximaram, a mãe conseguia já ver seu fruto sem lembrar do pior episódio de sua vida. E eles viveram felizes por um tempo, em equilíbrio, até que o castigo veio ao agressor de Maria, mas não sem antes levar algo de valioso que ela tinha. O coronel havia manifestado um câncer incurável, e sofreria até o fim dos dias que lhe restavam. Porém, sua esposa sabia da aventura que ele teve com a pobre camponesa, sendo a única que não caiu no conto do fruto divino. Era questão de tempo até tentar se vingar de Maria tirando a vida que concebeu, ela apenas aguardava a morte do coronel.

Sabendo disso, José conversou com sua esposa e ambos decidiram, por bem, gastar todas suas economias e mandar seu filho Jesus viver com uns parentes numa cidade maior, onde estaria livre das ameaças do provincianismo daquela terra. E, sem derramar uma lágrima nos olhos, o moleque foi. Mesmo não entendendo as razões, agarrou-se na devoção que tinha pelo pai e foi. Como os parentes de José também eram humildes, o menino teve que se virar. Mas era sério e trabalhador, e assim conversava de igual para igual com os mais velhos, escutava, cativava e aprendia. Foi assim que ganhou a vida e conhecimento. Criou condições para estudar, interessado cada vez mais em assuntos que poderiam fazê-lo regressar e lutar para melhorar as condições de seu povo. Foi o melhor em todas as matérias, tornou-se mestre e doutor. E então, já havia passado muito tempo sem contato com seus pais, e decidiu encerrar seu exílio para libertar seu povo.

Retornou como anônimo, mas sua matemática e estudo o fez ganhar destaque em alguns meses. Juntou diversos trabalhadores em torno de um objetivo só e, em pouco tempo, formava sólidas cooperativas que multiplicavam os pães daquele povo tão faminto. E a palavra se espalhou, até que chegou aos seus pais que o reencontraram. Foi um momento emocionante, até que ele se recusou a voltar para a casa deles. Disse que tinha uma missão, e precisava ajudar seu povo. Foi aí que Maria sofreu mais uma vez na vida, entre outras tantas que viriam.

O povo aclamava o nome de Jesus, e começaram a botá-lo no posto de prefeito mesmo faltando mais de ano para as eleições. Ele dizia que não queria se candidatar, mas seu pequeno comitê de amigos próximos o convenceram a ao menos entrar para o partido. Era composto por doze homens mais Jesus, o primeiro a se preocupar com as carências do povo em vez de buscar lucros.

Mas a palavra também se espalhou para os poderosos e, o filho legítimo do coronel se irritou com a história. Irritou-se mais ainda quando sua mãe contou quem era Jesus: seu irmão bastardo e nunca reconhecido. Só que o coronelzinho sabia que, com a força do povo e subsídio do partido popular não seria fácil alcançar seu irmão ilegítimo. Ele precisaria esperar o momento certo de dar o bote. Mas, como sempre, conseguiria tudo o que queria, e, àquela altura, tomando terras à força, já era dono de metade da cidade. Controlava o atual prefeito e estava preparando uma nova marionete para sucessão. Ninguém estragaria seus planos.

Acontece que os compromissos de Jesus eram pautados apenas pelos 12, que eram homens de ideais fortes e devotos a Jesus. Ninguém saberia facilmente os passos do filho de José que eram guardados a sete chaves, pois nele residiam todas as esperanças da revolução. Mas, em meio à luta, o filho de Maria acabou por se apaixonar por outra Maria, uma jovem libertária que nada tinha a ver com sua homônima: não era casta, não era mulher de arrumar marido. Era uma guerreira que sabia o que queria, e envolvia-se cada vez mais com o partido popular para conseguir melhorar sua condição.

Mesmo sendo arisca, a nova Maria não pôde resistir aos encantos daquele exímio líder que conduzia como maestro o movimento que incendiava o coração daquele povo em esperanças. Conseguiu até médicos de cidades vizinhas para ser voluntários, curando e prevenindo diversas doenças que eram incuráveis para aquele povo. E Jesus e Maria encontravam-se escondidos, o único que guardava tal segredo era um dos 12 que mais tinha afinidade com Jesus: Judas.

O problema é que o portador do segredo, apesar de ser um grande idealista, tinha em si o vício do jogo, sua única fraqueza. Trabalhador que era, sempre dava um jeito de pagar suas dívida, mas nunca parava de voltar a jogar e perder. E uma de suas dívidas foi comprada pelo coronelzinho que, tal qual um agiota, utilizou-se da força para cobrar a dívida. Judas não tinha o dinheiro, não tinha como pagar, mesmo vendo o jagunço segurar seu primogênito pelo pescoço. Implorou pela vida do menino, disse ao coronelzinho que qualquer coisa faria para pagar essa dívida, mas que poupasse sua família. Foi então que ele pagou o mais salgado preço.

Jesus chegou ao celeiro, mas sua Maria não estava lá. Havia apenas jagunços, que o prenderam  e o espancaram forte até que ele perdesse seus sentidos. Acordou em praça pública, amarrado em uma cruz, antes que o sol tivesse nascido. A cidade começou a se amontoar para ver, alguns queriam libertá-lo, mas um número grande de capangas do coronelzinho, armados, não deixavam ninguém se aproximar. Então, o mandante de tudo apareceu lá para o meio-dia, açoitando Jesus em praça pública, várias e várias vezes. As duas Marias, cada um em um canto, choravam de desespero ao ver isso. E José, ainda tão impotente, começou a matar o resto de bondade que havia em si e traçou um plano. Pediu uma mula emprestada e deixou o filho a ser açoitado, sem pensar em mais nada.

Quase na hora do pôr-do-sol, Jesus já havia perdido muito sangue. A cidade quase inteira estava nas imediações da pracinha, revoltada, protestando. O coronelzinho, cego de ódio e soberba, não conseguia perceber o que estava acontecendo ali. Humilhava e xingava Jesus, e o açoitava com uma força que já não lhe bastava. Então, pegou um pedaço de pau e bateu no tronco do seu desafeto, até que a força quebrasse suas costelas e perfurasse seus pulmões. Jesus morreria em pouco tempo.

Nessa hora, José retornava com a guarda de outra cidade, um número pequeno de guardas armados, mas que estavam lá para cumprir seu dever.Os jagunços sacaram suas armas, Jesus pendurado na cruz. E, quando a guarda parecia rendida, o povo atacou os jagunços com paus e pedras, e a revolução começou. Nunca a terra daquela pequena província bebeu tanto sangue, mas, no final, o coronelzinho fugiu em seu automóvel deixando para trás seus poucos capangas que ainda tinham vida. Era o som da vitória, o povo estava livre da tirania. Foi quando Maria conseguiu chegar perto do seu filho e constatar que ele estava morto.

Demorou três dias para limpar a bagunça.

E, depois desse tempo, o povo fez sua homenagem ao falecido Jesus, que de cadáver se tornaria busto, herói eternizado por palavras e lendas fantasiosas a seu respeito. O povo finalmente estava livre graças ao seu mártir. José sentia-se vingado, finalmente. Maria, a amante, guardava em seu ventre o fruto do amor que havia perdido na cruz. Já maria, a mãe, essa estava inconsolável. Chorava pelo preço da libertação de seu povo. O preço caro que só ela parecia pagar. Um desejo que um dia já a tomou e hoje era sua maior desgraça, pois, finalmente e tardiamente, ela havia abortado.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

You don't know me

E as portas de vidro de um bar quase vazio revelavam sua semi-depressão num fim de tarde corriqueiro. Sentada no balcão no seu terceiro drink enquanto toda a cidade ainda saía para se arrumar naquele dia cinzento, ela era apenas paisagem para os transeuntes que andavam animados pelas calçadas largas. O cenário era maravilhoso, ao contrário da cena que não era de todo mal. Era de certa forma poética, mas assim daquela forma que qualquer um que a presenciasse ficaria com a alma compadecida. Encarava o conteúdo do seu copo como se ele a compreendesse, e, já meio embriagada, mexia vagarosamente o canudo esperando que o gelo predissesse seu futuro.

Mas isso não iria acontecer.

O pianista chegou mais cedo, e quase por piedade à única cliente do bar naquele momento, tirou cuidadosamente o veludo das teclas e começou e tocar notas com a suavidade e elegância que só seus anos de prática e sensibilidade permitiam. Ela não percebeu o que acontecia, mas, aos poucos, a música foi conduzindo seus pensamentos em outra direção. Parou de encarar o copo e olhou para frente, e começou a reparar naquela paisagem que era o plano de fundo de seu filme. Já tinha cenário e trilha sonora, agora faltava o enredo, o conflito. Que ela procurava desesperadamente através do vidro, e, ao escurecer, encontrou refletido nele.

De repente viu-se bonita ao seu próprio modo. Esguia e bem-vestida, dotada de uma elegância pertencente a poucas. As luzes da cidade lá fora a chamavam, e então, deixou uma gorjeta generosa ao rapaz do bar e, quando estava pronta para sair, percebeu que o pianista, único a enxergá-la, era cego. Riu com a ironia e passou pela porta, ainda com as notas suaves na cabeça, meio dançante, aproveitando que tudo havia mudado.

Com o estômago meio embrulhado pela bebida que não era acostumada a tomar de barriga vazia, ela para numa barraca, compra algo para comer e senta no primeiro banquinho que aparece. A noite traz uma brisa fresca, que espanta um pouco do calor e a faz fechar os olhos por um instante, enquanto seus cabelos voam para trás. Era como se aquela parte da cidade fosse jazz, bela, complexa, elaborada e improvisada. Tal qual seus passos naquele dia incerto e atípico, sua rotina quebrada como o tempo marcado pela bateria.

A noite era uma jam session.

Ela desce as escadas do metrô e, lá dentro, um quarteto de cordas toca feliz, apenas esperando umas moedas como retorno. Ela separa umas notas e deixa na caixa, quando quase esbarra nele, que fazia o mesmo gesto. Os dois riem, encabulados, e se olham pelo tempo suficiente para ficarem ainda mais constrangidos. Quase como um pedido de desculpas, ele tenta arrumar tudo estendendo a mão a ela, convidando-a para dançar num cavalheirismo já extinto no mundo.

E eles dançam como se não fosse nada estranho, como se as pessoas não olhassem e como se o quarteto fosse sua bandinha particular. É quando um barulho ensurdecedor atrapalha o clima, fazendo com que a música suma de seus ouvidos e quebre o encanto do momento. As mãos se soltam, mas os olhares ainda continuam conexos por um tempo. Finalmente ela desvia o foco: seu trem havia chegado. Sem dizer nada, ela vira as costas e entra no vagão. Um pouco antes da porta fechar, ele toma a súbita decisão de entrar também. O sinal sonoro toca e não tem mais volta: agora estão juntos na mesma direção.

E ele não a conhecia. Ainda.