segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

You don't know me

E as portas de vidro de um bar quase vazio revelavam sua semi-depressão num fim de tarde corriqueiro. Sentada no balcão no seu terceiro drink enquanto toda a cidade ainda saía para se arrumar naquele dia cinzento, ela era apenas paisagem para os transeuntes que andavam animados pelas calçadas largas. O cenário era maravilhoso, ao contrário da cena que não era de todo mal. Era de certa forma poética, mas assim daquela forma que qualquer um que a presenciasse ficaria com a alma compadecida. Encarava o conteúdo do seu copo como se ele a compreendesse, e, já meio embriagada, mexia vagarosamente o canudo esperando que o gelo predissesse seu futuro.

Mas isso não iria acontecer.

O pianista chegou mais cedo, e quase por piedade à única cliente do bar naquele momento, tirou cuidadosamente o veludo das teclas e começou e tocar notas com a suavidade e elegância que só seus anos de prática e sensibilidade permitiam. Ela não percebeu o que acontecia, mas, aos poucos, a música foi conduzindo seus pensamentos em outra direção. Parou de encarar o copo e olhou para frente, e começou a reparar naquela paisagem que era o plano de fundo de seu filme. Já tinha cenário e trilha sonora, agora faltava o enredo, o conflito. Que ela procurava desesperadamente através do vidro, e, ao escurecer, encontrou refletido nele.

De repente viu-se bonita ao seu próprio modo. Esguia e bem-vestida, dotada de uma elegância pertencente a poucas. As luzes da cidade lá fora a chamavam, e então, deixou uma gorjeta generosa ao rapaz do bar e, quando estava pronta para sair, percebeu que o pianista, único a enxergá-la, era cego. Riu com a ironia e passou pela porta, ainda com as notas suaves na cabeça, meio dançante, aproveitando que tudo havia mudado.

Com o estômago meio embrulhado pela bebida que não era acostumada a tomar de barriga vazia, ela para numa barraca, compra algo para comer e senta no primeiro banquinho que aparece. A noite traz uma brisa fresca, que espanta um pouco do calor e a faz fechar os olhos por um instante, enquanto seus cabelos voam para trás. Era como se aquela parte da cidade fosse jazz, bela, complexa, elaborada e improvisada. Tal qual seus passos naquele dia incerto e atípico, sua rotina quebrada como o tempo marcado pela bateria.

A noite era uma jam session.

Ela desce as escadas do metrô e, lá dentro, um quarteto de cordas toca feliz, apenas esperando umas moedas como retorno. Ela separa umas notas e deixa na caixa, quando quase esbarra nele, que fazia o mesmo gesto. Os dois riem, encabulados, e se olham pelo tempo suficiente para ficarem ainda mais constrangidos. Quase como um pedido de desculpas, ele tenta arrumar tudo estendendo a mão a ela, convidando-a para dançar num cavalheirismo já extinto no mundo.

E eles dançam como se não fosse nada estranho, como se as pessoas não olhassem e como se o quarteto fosse sua bandinha particular. É quando um barulho ensurdecedor atrapalha o clima, fazendo com que a música suma de seus ouvidos e quebre o encanto do momento. As mãos se soltam, mas os olhares ainda continuam conexos por um tempo. Finalmente ela desvia o foco: seu trem havia chegado. Sem dizer nada, ela vira as costas e entra no vagão. Um pouco antes da porta fechar, ele toma a súbita decisão de entrar também. O sinal sonoro toca e não tem mais volta: agora estão juntos na mesma direção.

E ele não a conhecia. Ainda.



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